sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Em construção. Platão, Rapsódicas, diálogo

(capítulo de um livro)
Sumário:
1-Apresentação
2- Platão e os Rapsodos [ em alguns trechos da República, Íon, Fedro (e Ilíada)]
2.1 Fedro e discurso rapsódico
2.2  República, Ilíada e Narrativa
2.3  Íon e Performance
3-Algumas reflexões entre performance, dramaturgia/montagem, audiovisualidade e narrativa em Platão ( os ‘outros’ da escrita-logocentrica) – uma leitura a partir dos modernos (O Narrador, O Futuro do Drama, Lacoonte, The Singer of Tales).
4-Considerações finais: a forma dialógica
5-Bibliografia

2.1-2.2
Antes de analisarmos o livro 3 da República (onde se discute a teoria literária diante da construção hipotética – no discurso –  de uma cidade justa) e algumas partes do Íon (onde Sócrates contracena com um próprio Rapsodo, vejamos o que Platão nos fala acerca dos Rapsodos no Fedro 277d-278a, ao discutir com ele os discursos convenientes (uma espécie de crítica a escrita ou aos discursos, já no final do diálogo):
Porém, aquele que pensa que todo discurso escrito, não importando o assunto, terá, por força, de conter boa dose de brincadeira, e que não há peça oratória em verso ou prosa digna de ser encarada com muita seriedade, tal como acontece com as composições dos Rapsodos, que não permitem exame e nada ensinam, pois só têm a finalidade de persuadir, não passando os mais bem logrados discursos de recurso mnemotécnico para os que (já) sabem; e que julga que somente no discurso que versa sobre a justiça, a beleza e a excelência e que é proferido por mestres no interesse da instrução, e efetivamente numa alma, representa clareza, perfeição e avaliação séria, que tais palavras devam ser tidas como a própria autêntica prole do orador, em primeiro lugar o discurso no interior dele mesmo – se aí puder ser encontrado – e, em segundo lugar, os descendentes ou irmãos desse discurso que possam ter brotado de um honroso modo em almas alheias, e que não atentam para outros discursos- essa pessoa, ó Fedro, provavelmente é como eu e tu desejaríamos nos tornar. (Phaed, 277d-278a)
            A critica socrática é ferrenha para os Rapsodos: de dentro da própria oralidade ( no contexto literário) Sócrates critica os Rapsodos pela sua simulação de saber e sua força/finalidade de persuasão. Em contraposição a essa performance mnemotécnica, Sócrates repousa a dignidade e seriedade em outro modo de discursos. Esse tom irônico e esse confronto com os Rapsodos, com o teatro tradicional e Homero, por parte de Platão, se desdobra em diversos diálogos. Lembremos que Aristófanes, na comédia ‘as Nuvens’, retrata seu Sócrates como um avoado filósofo que acaba por morrer no final da peça(...)
            A receptividade e produção das rapsódias e do teatro grego é algo assistido e presenciado fortemente por Platão - e não só ele mas todo o povo. A formação primeira de Platão (além de ser destinado à política por ser de família nobre) era a de dramaturgo-poeta. Depois de conhecer Sócrates se converte para a filosofia, movendo sua formação nessa direção.
            Mas e o próprio texto platônico? Também ele tenta persuadir para alguma direção. Também ele é em algum sentido rapsódico? Como se interpretar o estilo dialógico? Os diálogos platônicos são uma narração mimética? Uma performance, uma atuação, e portanto estariam em segundo plano, perante as críticas à forma narrativa? Vejamos por um momento como começa a Ilíada em comparação com a República
Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida
(mortífera!, que tantas dores trouxe aos Aqueus
 e tantas almas valentes de heróis lançou no Hades,
 ficando seus corpos como presa para cães e aves
 de rapina, enquanto se cumpria a vontade de Zeus),
desde o momento em que primeiro se desentenderam
o Atrida, soberano dos homens, e o divino Aquiles.
E na República:
Ontem desci até o Pireu com Glaucon, filho de Aríston, a fim de dirigir minhas preces à Deusa, e ao mesmo tempo, com o desejo de ver de que maneira celebravam a festa, pois era  a primeira vez que a faziam. (327a)
É possível descobrir algo acerca dos narradores a partir desses trechos? Quem é o narrador na Ilíada? Nesse caso é o próprio poeta Homero, que raramente ou nunca se mostra como personagem, mas narra os eventos da guerra, imitando os personagens – uma narrativa mista. Um ‘eu homerico[1]’ subentendido que roga a Deusa que cante a ira de Aquiles, e logo começa a narrar o resgate fracassado da filha de Crises.  Na República é o próprio Sócrates (como personagem, e não Platão, o poeta) que narra os eventos e falas dos demais personagens.  O poeta aqui teve que se adaptar ao estilo de Sócrates..“(Eu) desci ao Pireu... para rogar à Deusa...”.  Temos aí alguma evidência acerca do modo narrativo em que se enquadram Homero e Platão? Temos variadas formas de narrativa nos diálogos (em outros parece não haver narrador – o diálogo vem direto). Quais outros elementos dramáticos que temos para pensar essa estranha relação de Platão em conjunção com Homero e os Rapsodos, sua forma de narrativa filosófica? Deveriamos pensar em indicar Homero para ler melhor Platão? Antes só parecia ser preciso acentuar pensadores como Parmênides, Heráclito, Pitágoras..
2.2
No livro três da República, quando Sócrates e Adimanto passam em revista diversas passagens em Homero em que a performance é criticada por levar ou atiçar uma propensão para o mal, temos algo a considerar. Ali não é simplesmente afirmado que todos atos e descrições ditos têm de ser expulsas da cidade dos guardiões. Existem atos e descrições que se salvam no crivo austero de Sócrates: 390d:
“ Mas, quando são descritos ou executados atos de firmeza ante todos os perigos, por homens ilustres, isso deve ver-se e ouvir-se, como quando : “batendo no peito, censurou seu coração: aguenta coração, que já sofreste bem pior!”
Mais tarde em 395c, fala: se imitarem, que imitem desde a infância a coragem, sensatez, pureza, liberdade. “...as imitações, se se perseverar nelas desde a infância, se transformam em hábito e natureza para o corpo, a voz, a inteligência”
Em 392a-Sócrates passa a se ocupar das histórias que se devem narrar envolvendo os homens – histórias sobre a justiça ( por já ter falado a respeito de histórias acerca da divindade, dos heróis, e das coisas do Hades.) e (principalmente aqui) do estilo. Examinando temas e formas das performances, (ou histórias narradas), podemos pensar aqui diretamente em Homero e os Rapsodos – Sócrates fala do poeta que fala por si mesmo – em voz direta – ou seja, de forma narrativa simples, e o poeta que faz uso de imitações (uma performance), mudando o estilo e a voz para cada personagem/fala que imita. Sócrates constroi uma versão de um trecho da Ilíada em narrativa simples. A própria República parece uma narrativa simples (de um diálogo) proferida pelo personagem Sócrates
         Na tragédia e na comédia o poeta não aparece entre as falas, a dizer algo. A narração do poeta é o ditirambo. A composição de ambas (narração e imitação?) é a epopeia (Rep. 394c). As considerações sobre a imitação e a atuação são tecidas com relação aos guardiões (que tem de imitar uma coisa só). Platão não fala somente de temas e estilos, (palavras) mas também das melodias e ritmos 399(a-e) apropriados às vozes de homens corajosos diante de adversidades e ordenados. Elementos como ritmo e melodia se sujeitam ao estilo e a palavra, e essa se sujeita ao caráter da alma (não a um caráter débil e ingênuo, mas à um caráter produzido pela inteligência que o modela para o belo e o bem). A linguagem desarmônica imita o caráter desarmônico e a linguagem harmônica o caráter harmônico, sensato e bom. Qualidades do discurso sincronizam-se com as qualidades da alma. Mas não abole a música ou poesia, concordando serem artes penetrantes e que afetam mais fortemente as almas. Somente se apropria delas pensando nos guardiões da cidade perfeita (e evidenciando aqui  ali tons irônicos dessa proposta – afinal, certos tons e ritmos teriam de ser banidos por serem demasiado prejudiciais às qualidades do guardião perfeito). Platão constrói uma relação filosófica de recepção da produção rapisódica. Platão imita os imitadores para restaurar a verdade do que eles imitam: a própria verdade. (DERRIDA, A farmácia de Platão, p.59).
4
 Quanto a hipótese acerca do texto interpretado através da performance oral, temos uma passagem interessante no Teeteto: para pensar a oralidade performática do texto Platônico. O jeito de pensar escrito e o jeito de pensar oral entram em questão aqui. (P. Lord – The Singer of Thales – p. 125).
Terpsion: (...) Mas que diálogo foi esse? Poderias narrá-lo?
Euclides: Não, por Zeus! Ao menos, não de memória. Entretanto, na ocasião fiz anotações a respeito tão logo retornei para casa. Mais tarde, com tranquilidade, à medida que recordava as coisas registrava-as, e toda vez que ia a Atenas costumava indagar a Sócrates sobre o que não conseguia lembrar; e quando voltava fazia correções, de forma que tenho escrita praticamente toda a conversa. (...) o pequeno escravo lerá para nós. (Teeteto, 143ª)
Uma ressalva deve ser feita; não supomos que os Diálogos seriam fruto desse registro do que o Sócrates histórico  conversava com seus interlocutores. Platão produz diálogos ficcionais-históricos que jogam com a questão da recepção escrita de uma performance-conversa em determinada atmosfera temporal – um jogo também entre verdade e ilusão da escrita. Nesses diálogos se dá a possibilidade de compartilhar experiências diversas na narrativa (costurá-las) – arte do narrador, ligação dos Diálogos com uma espécie de rapsódia?



[1] Que nos coloca no problema homérico, de saber como os poemas (e suas inconsistências) foram assentados em um corpo único e se foram múltiplos poetas. E esses problemas apontam para a característica de oralidade dos poemas 

Um comentário:

  1. Henrique, aqui são ideias, não são?
    Acho bom você elabora um sumário ou macroestrutura de seu texto.
    vou sugerir isso a todos.
    abs.

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