segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Ensaio sobre os "miguilins"

Boa noite, pessoal! Como estão todos? Acabo de reescrever os quatro parágrafos de considerações iniciais. Da primeira ideia que tive até agora, muita coisa mudou. Decidi dividir o estudo em duas partes e renomear os tópicos, mudar o título e usar como base alguns conceitos de Paul Zumthor, que, inclusive, fez pesquisas aqui no Brasil com cantadores populares. Os livros que usei foram Introdução à Poesia Oral e Performance, Recepção e Leitura. Bom, lá vão o novo título e o primeiro tópico:

Contadores de Rosa / em Rosa: a performance do contador de estórias rosianas e a presença do contador nas estórias de João Guimarães Rosa

“Deus meu! No sertão, o que pode uma pessoa fazer do seu tempo livre a não ser contar estórias?”
J. G. Rosa

“O desejo da voz viva habita toda poesia, exilada na escrita.” 
P. Zumthor

1 Considerações iniciais

Em Cordisburgo, Minas Gerais, cidade natal do escritor João Guimarães Rosa (1908-1967), os grupos de contadores de estórias[1] “Miguilim” e “Caminhos do Sertão” divulgam a obra do conterrâneo em performances nas quais são declamados trechos do romance Grande Sertão: Veredas e de narrativas como “Campo Geral”, “Meu Tio o Iauaretê”, entre outras. Nessas apresentações, o público se emociona, se diverte e se encanta com as estórias contadas e com as canções entoadas; e se admira com a capacidade mnemônica dos contadores, que chegam a narrar um conto praticamente na íntegra, com pouca ou nenhuma alteração de palavras, o que pode ser considerado uma façanha, em se tratando de uma linguagem nada corriqueira - e considerada “difícil” -  como é o caso da escrita literária de Guimarães Rosa.

            Além do papel divulgador da literatura rosiana, a atuação dos contadores de Cordisburgo atualiza a própria tradição dos narradores e cantadores populares, presentes nos mais diversos grupos humanos, desde tempos remotos como a Antiguidade grega, com seus rapsodos e aedos; até o Brasil do século XXI, com seus repentistas e cordelistas, que desempenham um importante papel de resistência cultural e de partilha de saberes.

Guimarães Rosa uma vez disse que todo sertanejo é, por natureza, um contador de estórias e que ele, como sertanejo, também o era: “(...) nós, os homens do sertão, somos fabulistas por natureza. Está no nosso sangue narrar estórias”[2]. Sendo, ele mesmo, um contador, Rosa privilegiou esses narradores em sua obra literária, transformando-os em personagens como Joana Xaviel e o velho Camilo, de “Uma estória de amor”; e o cantador Laudelim, de “O recado do morro”[3].

O presente ensaio está dividido em duas partes: na primeira, intitulada Os contadores de Rosa, apresentaremos os grupos “Miguilim” e “Caminhos do Sertão” para, em seguida, analisar seis performances de seus contadores de estórias. Utilizaremos, para tanto, o conceito e a teoria da performance do medievalista, historiador da literatura e estudioso da voz, Paul Zumthor. Na segunda parte, denominada Os contadores em Rosa, analisaremos a presença das figuras do contador e do cantador na ficção de Guimarães Rosa, tendo como base os contos “Uma estória de amor” e “O recado do Morro”.

[1] João Guimarães Rosa se referia às suas narrativas como “estórias” e, por isso, utilizaremos esse termo para indicar os contos, novelas e romances escritos por ele. A palavra “histórias” também será utilizada, mas para referência a outras narrativas. O escritor mineiro, no prefácio “Aletria e Hermenêutica”, da obra Tutaméia (1967), defende a originalidade da “estória”: “A estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra da História. A estória, às vezes, quer-se um pouco parecida com a anedota. (...) pela etimologia e para a finalidade, requer fechado ineditismo.” (ROSA, J.G. Ficção Completa. v. 2. Rio de Janeiro: nova Aguilar, 2009. p. 529) As narrativas rosianas, mesmo aquelas que se utilizam de “histórias” sertanejas ou tradições literárias preexistentes, têm como característica comum sua originalidade, demonstrada desde a linguagem até a forma de composição dos textos.  
[2] Declaração dada por Guimarães Rosa durante entrevista concedida ao crítico literário alemão Günter Lorenz, em 1965, no trecho em que o autor fala sobre seus primeiros escritos: Veja você, Lorenz, nós, os homens do sertão, somos fabulistas por natureza. Está no nosso sangue narrar estórias; já no berço recebemos esse dom para toda a vida. Desde pequenos, estamos constantemente escutando as narrativas multicoloridas dos velhos, os contos e lendas, e também nos criamos em um mundo que às vezes pode se assemelhar a uma lenda cruel. Deste modo a gente se habitua, e narra estórias que correm por nossas veias e penetram em nosso corpo, em nossa alma, porque o sertão é a alma de seus homens. Assim, não é de estranhar que a gente comece desde muito jovem. Deus meu! No sertão, o que pode uma pessoa fazer do seu tempo livre a não ser contar estórias? A única diferença é simplesmente que eu, em vez de contá-las, escrevia.” (ROSA apud LORENZ, Günter W. Diálogos com Guimarães Rosa. In: ROSA, J. G. Ficção completa. v. 1. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. p. XXXVII)
 [3] “Uma estória de amor” e “O recado do Morro” são contos integrantes da obra Corpo de Baile, publicada em 1956. 

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