segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Contadores de Rosa e em Rosa: rapsodos e aedos do sertão
Marcela M. D. Mapurunga

Resumo
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Palavras chave: rapsodos; aedos; Homero; contadores de estórias; grupo “Miguilim”; grupo “Caminhos do Sertão”; Guimarães Rosa.


Abstract
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Keywords: rhapsodes; aoidois; Homer; storytellers; “Miguilim” group; “Caminhos do Sertão” group; Guimarães Rosa.


1 Do oral à escrita; da escrita ao oral – os contadores ontem e hoje

Homero inaugura a literatura escrita ocidental com os poemas épicos Ilíada e Odisséia[1], que recriam relatos tradicionais até então transmitidos de forma oral, através das gerações. Contribuíram para a preservação dessas histórias, antes e depois de Homero, os aedos, poetas que cantavam versos acompanhados por instrumentos musicais, como a lira; e os rapsodos, que declamavam poemas sem instrumentos, mas com ritmo e teatralidade. Temos, então, a passagem do oral para a escrita, com os registros de Homero; e, desta, novamente para o oral, com as performances dos aedos e rapsodos, responsáveis pela manutenção da memória da coletividade e pela difusão da obra dos grandes poetas, especialmente, a de Homero, junto ao público, em sua quase totalidade, analfabeto.

Os aedos e os rapsodos gregos faziam parte de uma classe artística profissional, mas, na essência de sua atividade, podem ser inscritos em uma tradição maior: a dos contadores de histórias, pessoas que difundem relatos folclóricos, míticos, religiosos, contos de fada, cantigas, histórias exemplares, causos, entre outras narrativas, de autores anônimos ou não. Os contadores de histórias não necessariamente constituem uma “casta” ou “classe” dentro da sociedade, como acontecia com os aedos e rapsodos da Antiguidade; ao contrário, encontram-se dispersos e, em sua maioria, sem fazer da contação uma atividade sistemática ou profissional.

O escritor mineiro João Guimarães Rosa (1908-1967) dizia que todo sertanejo é, por natureza, um contador de estórias[2] e que ele, como sertanejo, também o era: “(...) nós, os homens do sertão, somos fabulistas por natureza. Está no nosso sangue narrar estórias” (ROSA, 2009, p. XXXVII). Como bom contador, muitas das estórias de Guimarães Rosa são baseadas em narrativas colhidas por ele desde a infância, em Cordisburgo, Minas Gerais, e durante toda a sua vida de escritor. Em 1952, por exemplo, quando transportou uma boiada junto com os vaqueiros liderados por Manuel Nardi (o Manuelzão), Rosa tomou nota de tudo o que via pelo caminho. Junte-se a esse tipo de material a imaginação, a inteligência, a erudição e a sensibilidade poética do autor, e o resultado é uma obra reconhecida dentro e fora do Brasil por sua qualidade e profundidade.

Sendo, ele mesmo, um contador de estórias, Guimarães Rosa privilegiou esses narradores populares em seus escritos, transformando-os em personagens como Joana Xaviel e Camilo, em Uma estória de amor; e o cantador Laudelim, em O recado do morro. Com personalidades diferenciadas entre si, esses contadores têm uma nota comum: a capacidade de cativar e emocionar o público com as suas performances. Joana, que é descrita como uma mulher feia e rústica, se transformava, em aspecto e trejeitos, enquanto estava narrando estórias; era capaz, então, de seduzir um ouvinte que, em outra situação, não se interessaria por ela “como mulher”. Sua performance nos remete às técnicas audiovisuais desenvolvidas pelos rapsodos para captar e manter a atenção da plateia, que não dispensam um certo grau de sedução na fala e no gesto. Camilo, um pobre coitado, velho e desvalido, surpreende a todos os convidados da festa de Manuelzão com seu talento narrativo, até então não revelado totalmente, e se torna o centro das atenções, talvez, pela primeira vez em sua vida. Sua narrativa, além de ilustrar a distinção social que se fazia de um rapsodo (ao menos durante sua performance), remete a tempos míticos, assim como os poemas homéricos, que falavam de um mundo povoado por heróis e divindades. O violeiro Laudelim, por sua vez, nos faz lembrar os aedos: ele compõe uma “cantiga migradora”, inspirada por uma misteriosa força da natureza e destinada a se perpetuar através dos tempos, nas violas e corações do povo, como os antigos poemas líricos da antiga Grécia.

Em Cordisburgo, Minas Gerais, cidade natal de Guimarães Rosa, dois grupos atualizam a tradição dos contadores, fazendo com a obra do escritor conterrâneo algo parecido com o que rapsodos fizeram com os poemas de Homero: partem do texto escrito para a performance oral, divulgando suas narrativas ao público. O “Grupo de Contadores de Estória Miguilim” reúne meninos e meninas a partir dos 11 anos de idade e, por meio de técnicas de leitura, memorização e declamação, os habilita a narrar trechos longos das estórias rosianas aos visitantes da Casa Museu Guimarães Rosa; aos turistas que vão a Cordisburgo durante as anuais “Semanas Roseanas”; e em outras apresentações dentro e fora do município. Em geral, os “miguilins”, como são conhecidos na cidade, permanecem nesse grupo até os 18 anos, quando, em geral, têm de sair de Cordisburgo para prosseguir com os estudos ou entrar no mercado de trabalho, uma vez que não há faculdades nem maiores horizontes profissionais no pequeno município, de 9.014 habitantes[3].

Depois dos 18 anos, aqueles que desejam seguir como narradores de Guimarães Rosa podem ingressar em outro grupo de contadores: o “Caminhos do Sertão”, formado por ex-miguilins e que promove caminhadas eco-literárias por paisagens que integram a obra rosiana – enquanto se caminha pelas veredas do interior de Minas Gerais, os narradores do grupo declamam trechos dos escritos de Rosa. Mais experientes, os “caminhantes do sertão” ousam mais do que os miguilins, incluindo doses maiores de teatralidade e música, em suas performances.  

Neste ensaio, pretende-se analisar as performances de alguns dos narradores populares presentes na obra rosiana – os contadores em Rosa - e de alguns narradores dos grupos “Miguilim” e “Caminhos do Sertão” – os contadores de Rosa; relacionando-as aos estudos sobre as performances dos rapsodos e aedos, na Antiguidade grega.


2 Conceitos
2.1 - Aedos e rapsodos
2.2 - Contadores / cantadores
2.3 - Performance

3 Análises
3.1 – Contadores de Rosa
            3.1.1 – Grupo Miguilim
                        3.1.1.1 – Performance de “O Reencontro”
                        3.1.1.2 – Performance de “Autobiografia adulta de João Guimarães Rosa”
                        3.1.1.3 – Performance de “Tio Terêz”

            3.1.2 – Grupo Caminhos do Sertão
                        3.1.2.1 – Performance de “Reza Brava”
                        3.1.2.2 – Performance de “Os jagunços”
                        3.1.2.3 – Performance de “Meu tio Iauaretê”

3.2 – Contadores em Rosa

            3.2.1 – A revelação do contador, em Uma estória de amor

Em “Uma estória de amor (Festa de Manuelzão)”, que narra a festa que Manuel Jesus Rodrigues organiza para benzer a capelinha erigida na fazenda Samarra, temos dois contadores de estórias: uma, conhecida de todos, Joana Xaviel; o outro, um contador que se revela, o velho Camilo. Os dois são pessoas desvalidas, que vivem de favores e esmolas e que, diziam as línguas, tinham alguma espécie de envolvimento amoroso. Os dois tinham características bem distintas e, em alguns casos, até mesmo, contrárias. A negra Joana era nova, estava nos seus quarenta anos; o branco Camilo era, como sua alcunha já dizia, “velho”, contando mais de oitenta anos. Joana é descrita como uma mulher “solta” (ROSA, 2009, p. 380) sem paradeiro no mundo; fisicamente feia, mal cuidada, gorda; psicologicamente, é descrita como extrovertida, mentirosa, aduladora, fofoqueira, ladra, e, diziam as más-línguas, até havia matado um veredeiro, no passado; Camilo, por seu turno, tinha feições bonitas, psicologicamente “era digno e tímido” (ROSA, 2009, p. 367); ao contrário da errante e expansiva Joana, Camilo era uma “espécie doméstica de mendigo, recolhido, inválido” (ROSA, 2009, p. 366) que, no entanto, tinha “um certo decoro antigo”, um siso de respeito de sua figuração” (ROSA, 2009, p. 367).

Apesar da contação de estórias ser um ponto em comum entre as duas personagens, havia diferenças entre as performances de Camilo e de Joana. O velho até recitava curtas quadrinhas decoradas, mas não botava alma na narrativa: “Aquilo era como se beber café frio, longe da chapa da fornalha” (ROSA, 2009, p. 376). Joana, por sua vez, sabia “compridas estórias de verdade” (ROSA, 2009, p. 376), “fogueava um entusiasmo” (p. 377), transmudava-se a cada personagem que interpretava; seduzia seus ouvintes: “(...) a gente chega se arreitava, recebia calor de se ir com ela, de se abraçar. (...) sem ela contando estória nenhuma, quem vê que alguém possuía perseveranças de olhar para Joana Xaviel como mulher assaz?” (p. 381) A técnica apresentada por Joana faz dela uma verdadeira contadora de estórias, e não, simplesmente, alguém que decorou uma quadra e a repete, maquinalmente, como é o caso de Camilo no início do conto. Câmara Cascudo fala desse requisito performático que o contador de estórias deve ter: “A narração é viva, entusiástica, apaixonada. (...) Só conta uma estória quem está disposto a viver-lhe a vibração incontida, transmitindo-a ao ouvinte ou ao auditório.” (CASCUDO, 2012, p. 272)

O conto “Uma estória de amor” é entremeado pelas estórias de Joana Xaviel, pela narração inesperada de Camilo, no final, e também pelos lundus e cocos do tocador de rabeca, Chico Bràaboz, e do violeiro, Pruxe. Quem puxa a dança na festa de Manuelzão é o menino Maçarico, sobrinho do Pruxe, “dansador” que parece performar um transe, em meio a versos que falam sobre o Rio São Francisco (presença constante na obra de Guimarães Rosa).

O ponto alto do conto é a revelação de Camilo como um contador de talento original, a revelação de sua verdadeira voz: “O velho Camilo estava em pé, no meio da roda. Ele tinha uma voz. Singular, que não se esperava, por isso muitos já acudiam, por ouvir.” (p. 418). Camilo contou a estória do Vaqueiro Menino e do Boi Bonito, com direito a recitação de versos, toque de viola, elenco de vaqueiros, de A a Z, demonstrando a memória prodigiosa do velho. A festa, que já se encaminhava para seu final, ganhou novo fôlego: “Venham o Pruxe, o Maçarico, o Lói, Acizilino, o Queixo-de-boi, Jão Orminiano, Jenuário. Com facho, tocha, rolo de cera acêso, e espertem essas fogueiras – seu Camilo é contador!” (p. 419) O café frio do início da narrativa se esquenta em renovado fogo. A estória remonta tempos imemoriais:

“Velho Camilo cantava o recitado do Vaqueiro Menino com o Boi Bonito. O vaqueiro, voz de ferro, peso de responsabilidade. O boi cantava claro e lindo, que, por voz nem alegre, nem triste, mais podia ser fala de fada. No princípio do mundo, acendia um tempo em que o homem teve de brigar com todos os outros bichos, para merecer de receber, primeiro – o que era – o espírito primeiro. Cantiga que devia de ser simples, mas para os pássaros, as árvores, as terras, as águas. Se não fosse a vez do Velho Camilo, poucos podiam perceber o contado.
Até as mulheres choravam. Leonísia suavemente, Joana Xaviel suave. Joana Xaviel de certo chorava. Essa estória ela não sabia, e nunca tinha escutado. Essa estória ela não contava. O velho Camilo que amava. Estória!” (ROSA, 2009, p. 428)

                        A narração de Camilo, agora cheia de nuances (a “ voz de ferro” do vaqueiro; a voz de fada do boi; a recitação de versos e a cantiga mítica do nascimento do mundo), emociona os ouvintes e surpreende a experiente contadora Joana por seu conteúdo original (tanto no sentido de “inédito” quanto no de que “remete às origens”).

            3.2.2 – O nascimento da cantiga migrante, em O Recado do Morro

                        No conto O Recado do Morro, o protagonista, Pedro Orósio, é guia durante uma travessia pela região de Cordisburgo, Minas Gerais, passando pela Gruta de Maquiné e por fazendas que possuem nomes ou proprietários que formam uma sequência de astros/planetas/deuses, deixando cifrado no texto a sugestão de que a estória é uma espécie de travessia cósmica ou representa a própria sina do homem, num mundo impregnado pelo divino. O “recado” que o Morro da Garça dá é um alerta para Pedro, do perigo de morte à traição. O problema é que quem consegue ouvir o recado cifrado, não consegue transmiti-lo de forma clara e, talvez, mesmo que conseguisse, não seria levado a sério por ninguém, já que se trata de alguém marginalizado: o ermitão morador de caverna, Malaquias (ou Gorgulho):
Que que disse? Del-rei, ô, demo! Má-hora, esse Morro, ásparo, só se é de satanaz, ho! Pois-olhe-que, vir gritar recado assim, que ninguém não pediu: é de tremer as peles… Por mim, não encomendei aviso, nem quero ser favoroso… Del-rei, del-rei, que eu cá é que não arrecebo dessas conversas, pelo similhante! Destino, quem marca é Deus, seus Apóstolos! E que toque de caixa? É festa? Só se for morte de alguém… Morte à traição, foi que ele Morro disse. Com a caveira, de noite, feito História Sagrada, del-rei, del-rei!…” (ROSA, 2009, p. 452)

Depois, Pedro Orósio ouve, da boca de outra pessoa, o mesmo alerta; só que esse, tampouco, é digno de crédito: o irmão amalucado de Malaquias, o Zaquias (ou Catraz), que ouviu a estória do irmão e a passou adiante. O terceiro portador da mensagem é Joãozezim que, por ser criança, também não é levado a sério. O quarto repetidor é o Guégue, o bobo da fazenda de Dona Vininha – outro que não diz “coisa com coisa”. O recado do Morro atravessa as distâncias e chega até o arraial que era o destino da travessia de Pedro Orósio por meio da fala apocalíptica do andarilho fanático religioso a quem chamavam Nominedômine (ou “Santos Óleos”, ou “Jubileu”, conforme as palavras que ia repetindo em suas pregações in nomine Domine). O recado começa a ser decifrado por uma outra personagem lunática, um homem com mania de riqueza e que, para mostrar sua fortuna para todos da cidade, passava o dia fazendo contas em todos os espaços possíveis, de preferência, nas paredes da igreja Matriz. Esse homem é conhecido na cidade como “o Coletor” – nada relacionado a sua atividade profissional, mas que acaba por revelar seu papel na narrativa: o de coletar a fala desconexa de Nominedômine e começar a decifrá-la: “rei-menino”, “cinco salmão” (signo de Salomão), “toque de caixa” eram coisas que remetiam à Festa do Divino, que aconteceria no dia seguinte, naquele arraial. Pedro ouvia a divagação do Coletor junto de seu amigo violeiro, o Laudelim, também chamado de Pulgapé. Pedro não dá a mínima para o Coletor, mas Pulgapé acha que aquilo era um bom material para compor uma música, tarefa que começa ali, mesmo. Pedro se despede do amigo, que fica juntando letra e melodia, com seu violão, debaixo de uma árvore. O recado do Morro, força misteriosa da natureza, foi captado por loucos, bobos e crianças, mas foi preciso chegar aos ouvidos de um artista, um aedo moderno, para adquirir beleza, plasticidade e, como veremos a seguir, clareza para o real destinatário.
                        Pedro havia sido convidado pelo amigo Ivo, que andava meio chateado com ele por causa de mulher, para uma festa, no dia seguinte, num lugar distante do arraial. Meio contrariado, Pedro aceita, mais para reatar amizade com Ivo do que por vontade de sair do arraial em pleno festejo do Divino. Na noite da festa, Pedro e Ivo estão indo se encontrar com os outros amigos (todos andavam chateados com Pedro, todos por causa de mulher) quando ouvem a cantoria de Laudelim no hotel onde estavam hospedadas as pessoas que tinham sido guiadas até o arraial por Pedro Orósio. Eles param para ouvir a performance do violeiro: “(...) dentro da sala, governava o Laudelim, Pulgapé bom amigo! – assentado importante entre as pessoas, impondo o aprumo de seu valor.” (ROSA, 2009, p. 482) Depois de alguns lundús, Laudelim anuncia que vai cantar uma música de composição própria, a recém-nascida cantiga baseada na fala do Coletor:
“Quando o Rei era menino
já tinha a espada na mão
e a bandeira do Divino
com o signo-de-salomão.
Mas deus marcou seu destino:
de passar por traição.

Doze guerreiros somaram
pra servirem suas leis
– ganharam prendas de ouro
usaram nomes de reis.
Sete dêles mais valiam:
dos doze eram um mais seis...

Mas um dia, veio a Morte
vestida de embaixador:
chegou da banda do norte
e com toque de tambor.
Disse ao Rei: – A tua sorte
pode mais que o teu valor?

– Essa caveira que eu vi
não possui nenhum poder!
– Grande Rei, nenhum de nós
escutou tambor bater...
Mas é só baixar as ordens
que havemos de obedecer.

– Meus soldados, minha gente,
esperem por mim aqui.
Vou à lapa de Belém
pra saber que foi que ouvi.
E qual a sorte que é minha
desde a hora em que eu nasci...

– Não convém, oh Grande Rei,
juntar a noite com o dia...
– Não pedi vosso conselho,
peço a vossa companhia!
Meus sete bons cavaleiros
flôr de minha fidalguia...

Um falou pra os outros seis
e os sete com um pensamento:
– A sina do Rei é a morte,
temos que tomar assento...
Beijaram suas sete espadas,
produziram juramento.

A viagem foi de noite
por ser tempo de luar.
Os sete nada diziam
porque o rei iam matar.
Mas o rei estava alegre
e começou a cantar...

– Escuta, Rei favoroso,
nosso humilde parecer:
...........................................” (ROSA, 2009, págs. 483 e 484)

                        A canção produz uma profunda emoção no público, emociona, inclusive, o estrangeiro Alquist (ou Olquiste), que não entendia muito bem o português, mas sentiu a comoção geral. O narrador, ao descrever essa comoção, fala do nascimento de uma canção do tipo “migrante”, canção destinada a se perpetuar e atravessar fronteiras, como pressentiu um dos personagens, seu Jujuca:
Comovido, ele pressentia que estava assistindo ao nascimento de uma dessas cantigas migradoras, que pousam no coração do povo: que as violas semeiam e os cegos vendem pelas estradas. Até ao seu Juca, seu pai, ou mesmo um sujeito rústico braçal, como aquele Ivo, ali defronte, se embaciavam os olhos, quase que cai lágrimas. “- Importante... Importante...” – afirmava o senhor Alquist, sisudo subitamente, desejando que lhe traduzissem o texto digestim ac districtim, para o anotar. Sem apreender embora o inteiro sentido, de fora aquele pudera perceber o profundo do bafo, da força melodiã e do sobressalto que o verso transmuz da pedra das palavras. (ROSA, 2009, p.485)


                        Laudelim teve de repetir a cantiga, tão nova e tão cativante, quando dois freis chegaram no local. A repetição facilitou a memorização dos versos por Pedro Orósio, Ivo e os outros amigos que sairiam para outra festa, em local distante. Eles saíram da frente do hotel onde a cantoria acontecia e, bebendo, foram seguindo caminho ermo, cantarolando a canção recém-nascida. Às tantas, já bêbado (e, portanto, privado da razão – como os amalucados), Pedro Orósio tem um súbito entendimento – uma epifania, em certo sentido – da letra da música – o recado do morro: “Traição? Ah, estava entendendo. Num pingo dum instante. Olhou aqueles, em redor. Sete? Pois não eram sete?! Estarreceu, no lugar.” (ROSA, 2009, p. 489) Descobriu que aquilo era uma emboscada e avançou nos traidores: subjugou a todos, mas, com medo de ter matado algum, fugiu, por “tantas serras, pulando de estrela em estrela, até aos seus Gerais”. (ROSA, 2009, p. 490)
            Em O Recado do Morro, temos, portanto, a estória do nascimento de um canto original, composto pela sensibilidade de um artista-cantador-poeta, um aedo moderno, a partir de falas cifradas reproduzidas por gente que não é levada a séria na sociedade (o ermitão e seu irmão, o andarilho fanático, o bobo, a criança, o louco com mania de riqueza). São párias da sociedade, mas foram os únicos capazes de captar e reproduzir o alerta contido na mensagem da fonte primeira desse canto, que é a própria natureza, o próprio sertão, representado na “persona” do Morro da Garça. A cantiga que imortalizou o “recado” é destinada a ser “migradora”, a pousar “no coração do povo”, a ser semeada pelas violas e vendidas nas estradas pelos cegos. Tais como os poemas de Homero e outros poetas antigos, que atravessaram milênios e continuam a provocar comoção em quem entra em contato com eles.
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(talvez um enxerto, em uma nota de rodapé:
O conto “Conversa de bois”, da obra “Sagarana” (1946), é narrado por alguém que ouviu a estória da travessia trágica de Agenor Soronho e Tiãozinho ser contada pelo poeta Manuel Timborna que, por sua vez, a ouviu da irara* Risoleta, testemunha dos acontecimentos. A cadeia de reprodução (ou recontação) que vai da irara ao narrador e, deste, ao leitor, comporta a recriação da estória, uma vez que, no início do conto, o narrador pede a Timborna “licença para recontar diferente, enfeitado e acrescentado ponto e pouco.” (ROSA, 2009, p. 211) É característica da tradição oral a recriação das narrativas, por meio do enxerto de novos trechos, edição de outros, alongamentos e abreviações, conforme a oportunidade, o público e outras condicionantes. A sabedoria popular cunhou a expressão “quem conta um conto, aumenta um ponto”, para resumir essa tendência de co-criação das histórias narradas.)


4 Conclusão

5 Bibliografia

CASCUDO, Luis da Câmara. Literatura Oral no Brasil. São Paulo: Global, 2012.

LORD, Albert B. The singers of tales. 2nd edition. Cambridge: Harvard University Press, 2000.

ROSA, J.G. Ficção completa. v. 2 . Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009.

6 Anexos
6.1 – Entrevista com Dôra Guimarães, coordenadora do Grupo Miguilim
(Julho de 2014 – Cordisburgo – MG)
Marcela: Como começou o grupo de contadores de estórias Miguilim?
Dora Guimarães: O grupo Miguilim foi criado pela Dra. Calina Guimarães, que é até prima de Guimarães Rosa, ela é de Cordisburgo, mas passou quase a vida toda em Juiz de Fora, lá ela era médica obstetra e professora da Universidade. E, quando ela estava para aposentar, ela veio a Cordisburgo e viu que o Museu estava meio abandonado. Então, ela pensou assim: “Bom, agora eu achei alguma coisa para fazer depois de aposentada”. Ela comprou uma casinha aqui em Cordisburgo, voltou, e aí ela foi atrás de recursos da Secretaria de Cultura para reformar o Museu. E ela, também, sempre teve vontade de fazer um trabalho com as crianças de Cordisburgo, então, ela viu que poderia unir as duas coisas: cuidar do Museu e fazer esse trabalho educacional com as crianças. Ela resolveu, então, reunir um grupo de jovens e formá-los como guias do Museu. E, na época, eu já narrava Guimarães Rosa e ela, quando ficou sabendo, ela não acreditou, porque ela achava que Guimarães Rosa não é narrável, porque é um texto difícil, né? E nós, íamos apresentar um trabalho no Palácio das Artes, chamado “Contos de Amor”, Elisa e eu. E nesse trabalho a gente narrava um trecho de Grande Sertão: Veredas, e a gente narrava outros autores. Então, eu convidei tia Calina para ir e quando ela ouviu sendo narrado, era até a Elisa que narrava “o primeiro encontro”, ela viu que era possível. Então, ela nos convidou para vir para cá para dar uma oficina, porque nós já dávamos oficina para formação de contadores. A gente veio em 96, nós demos a primeira oficina, mas ela pegou jovens de 2º grau. Só que ninguém ficou, a não ser o Zé Maria, foi o único que ficou dessa turma. Os outros foram embora de Cordisburgo, porque aqui o pessoal vai embora para estudar, para trabalhar, porque a cidade aqui é muito pequena. E aí ela nos chamou de novo para a gente dar oficina para meninos de 11, 12 anos. Na época, eu falei assim para ela: “Mas, tia, você é doida? Você vai preparar meninos de 11, 12 anos para narrar Guimarães Rosa? Porque a nossa oficina não é para Guimarães Rosa, é para qualquer história”. Ela falou: “Olha, você não tem nada com isso, você dá a oficina, que eu me viro com eles aqui”. E a gente veio, deu oficina para uns 20 meninos. E ela ficou com eles aqui dando texto, lendo a obra, falando de Guimarães Rosa, sabe? E, uns tempos depois, quando eu voltei aqui, eu não acreditei: realmente, ela tinha conseguido fazer os meninos narrar Guimarães Rosa. Aliás, nessa oficina, eu dei o texto “Miopia” para um dos meninos, o Guilherme, que é até filho do Brasinha, ele foi o primeiro que começou a narrar. E ela continuou, então, esse trabalho com eles, até 2000. Em 2000, ela começou a ter sinais de Alzheimer, começou com problema de memória, aí, eu vim, a princípio para ajuda-la, e depois eu assumi, mesmo, a direção, e comecei a vir de 15 em 15 dias para acompanhar novas turmas. E aí, eu comecei a fazer os meninos participarem da Semana Roseana, porque, até então, eles não participavam. Comecei a escolher textos da obra de Guimarães Rosa, dividir entre eles, então, eles começaram a narrar, durante a Semana. A gente fez montagem de Grande Sertão: Veredas, Festa de Manuelzão, Campo Geral. Mas aí, essa turma que eu estava seguindo começou a sair, então, eu tinha que formar outro grupo, novamente, mas, aí, era muito menino para eu tomar conta sozinha. Foi aí que eu convidei a Elisa, ela veio em 2005. A gente começou a vir de 15 em 15 dias, eu com uma turma, ela com outra, porque a gente tem sempre que formar turmas novas porque os meninos vão chegar no fim do segundo grau, normalmente, e a gente faz todo um trabalho para eles saírem da cidade, para continuar estudando, porque o grupo Miguilim é uma passagem para eles. E a tia Calina falava assim, que ser miguilim era uma forma de atravessar a adolescência de maneira alegre e saudável. Então, realmente é uma passagem da infância para a idade adulta de uma forma muito rica. E, aí, a gente continua até hoje, a gente já está na nona geração. E eu venho acompanhando esses meninos, eles desabrocham para a vida, a gente acompanha, por exemplo, como eles se saem bem na universidade, como eles se saem bem para conseguir emprego, nas entrevistas, porque eles são capazes de falar em público, então, para eles, uma entrevista é uma fichinha!  Eles fazem numa boa, todo mundo fica encantado com eles porque eles sabem falar. Mas é um trabalho muito miúdo, sabe? É uma coisa, assim, de muita perseverança, de muito amor porque é um negócio muito pequeno, você vai aos pouquinhos, tem meninos, até, tem dificuldade de ler, no início. Na turma agora, tem um menino que tem uma deficiência de leitura, sabe? Então, com ele, eu tenho quase que treinar frase por frase do texto. Eu falo a frase, ele repete; eu falo a frase, ele repete, então, eu tenho que dar para ele uma assistência quatro vezes maior do que para os outros. Mas eu acho, assim, que é importante para ele conseguir superar esse problema dele. E ele está crescendo. E a gente vê, nas apresentações, o resultado desse trabalho porque tem meninos que, quando eles entram, você fala assim: “Esse nunca vai ser contador: não sabe ler com expressão, não consegue dar aquela vida ao texto. Porque tem uns que já têm isso: pegam o texto e já sabem ler com expressão, com uma certa dramaticidade, quando precisa. Mas tem uns que não tem nada, e aí, eu fico: “Como eu vou trabalhar esse menino?”. Aí, quando eu vejo eles narrando, eu falo: “Gente! Como?!”. Porque eles vão crescendo. Então, eu acho que é um trabalho muito prazeroso, porque a gente vê o resultado.
Marcela: Guimarães Rosa dizia que quando nada acontece, há um milagre acontecendo. Você acha que esse desabrochar desses meninos é um exemplo de um milagre acontecendo, individualmente?
D. G.: Ah, eu acho. Quando a gente fica sabendo notícias deles, como eles se saem fora daqui, a vida profissional deles...
Marcela: O próprio Guilherme virou doutor, que nem o Guimarães Rosa...
D. G.: Pois é, e o Guilherme foi o primeiro a receber o texto, né? Mas tem geólogo, tem gente fazendo Letras, uma que fez Zootecnia; Direito, tem vários; então, é muito gratificante o trabalho.
Marcela: Então, o grupo Miguilim surge em 1996?
D.G.: Não, a primeira oficina foi em 96, mas oficialmente, como grupo, que a minha tia escolheu o nome, foi em 97. Então, nós temos 17 anos de grupo.
Marcela: Você disse que já tinha um grupo de narradores de histórias. Como era?
D. G.: Eu comecei a contar história, assim, foi uma coisa que aconteceu na minha vida sem que eu esperasse, porque, assim, eu tinha um amigo que ele mora na Venezuela e é casado com uma venezuelana e ela era contadora de histórias e ele começou a contar história, também. Ele veio a Belo Horizonte em 1990 e ofereceu uma oficina na Livraria Miguilim. E eles ficaram na minha casa. Era a oficina “Conta Contos – a arte de contar histórias”. E eles falaram: “Vamos, Dora, fazer a oficina?”, eu falei: “Ah, não, não vou contar histórias, mesmo!”, “Ah, não, vamos com a gente!”, aí eu fui, mais para acompanha-los, para dar assistência. E aí, eu fui fazer a oficina, eu narrei história e eles gostaram. Quando eles pediram para preparar um texto, eu já escolhi um texto literário. A oficina não era dirigida para textos literários, era para histórias em geral. E eu já escolhi um texto literário, era até da Marina Colassanti. E eles gostaram muito, tanto que, o texto que eles escolheram, depois, para eu preparar, era literário. E, na época, eu dava aulas de português, então, eu comecei a preparar contos e contar para os meus alunos. E eu vi que eles se encantavam com as histórias. E eram todos textos que eu contava na íntegra: eu preparei “A doida”, de Carlos Drummond Andrade; vários contos da Marina Colassanti, Aníbal Machado, eu fui preparando contos e contando para eles, quer dizer, eles foram o meu laboratório, eu aprendi a contar com eles, e com minha família: a gente se reunia, “Conta aí uma história!”; e eu contava. Nas reuniões de professores: “Ah, Dora, conta história!”. E eu contava história. E aí, eu também fiz Psicologia. Eu trabalhava em uma clínica, e, um dia, eu conversando lá com a coordenadora da clínica, falei para ela do trabalho, ela falou: “Uai, Dora, tem uma psicóloga que trabalhou aqui com a gente e ela trabalha com contos de fadas. Quem sabe, você liga para ela, já que você faz esse trabalho, para vocês fazerem um trabalho juntas. Então, foi aí que ela me deu o telefone da Elisa, eu liguei para ela, a gente foi reunir, e foi aí, então, que a gente começou a trabalhar juntas. Porque a Elisa trabalhava em uma ONG que dava vários tipos de cursos e, entre eles, curso de narração de histórias e ela já tinha dado uma oficina de narração de histórias, também. E ela me convidou para dar oficina com ela. A partir daí, a gente começou a dar oficinas juntas. Ela tinha conhecimento com uma diretora de teatro, que era amiga dela e essa diretora gostou do nosso trabalho e começou a nos dirigir, assim, pequenas narrações na biblioteca, tal. E foi esta, Cida Falabela, que nos dirigiu nesse trabalho que a tia Calina ouviu, que chamava “Contos de Amor”, lá no Palácio das Artes.
Marcela: Você lembra o ano?
D. G.: Foi em 95 que a gente apresentou. A gente narrava Clarice Lispector, Aníbal Machado, Wilma Guimarães Rosa, Guimarães Rosa e Mário Quintana. Eram cinco autores. Mas, aí, com a Cida, a gente começou a montar trabalhos em cima da obra de Guimarães Rosa. O primeiro trabalho foi “RiobalDiadorim – encontros no sertão”, que a gente apresentou no 1º Congresso Internacional Guimarães Rosa, na PUC-Minas e foi muito legal porque vieram todos os tradutores de Guimarães Rosa: veio o Clarson, o alemão; o Bizarri, que era o italiano; veio o mexicano, que eu não me lembro o nome dele. Então, foi um Congresso que reuniu todos os rosianos, os especialistas e nós apresentamos “RiobalDiadorim”. E tinha um professor do Porto que nos convidou para apresentar no Porto e a gente foi, também. Depois, nós montamos “Estórias de mulheres em Guimarães Rosa”. Então, a gente pegou Maria Mutema, Nhorinhá, “Esses Lopes” e outros. Depois, já com outra diretora, de São Paulo, “Diadorim: no sirgo fio dessas recordações”. Aí, depois, nós montamos “Dão lalalão: nos cimos do amor” e montamos, também, “Deus ou o diabo para o jagunço Riobaldo”, que foi, também, a Cida que nos dirigiu. E, no ano passado, eu montei com o Tiago, que é ex-miguilim, ele me convidou: “Ô, Dora, vamos fazer um trabalho juntos?”. Então, a gente escolheu “A hora e a vez de Augusto Matraga”. A gente fez mais de 15 apresentações do Matraga. E, agora, nós estamos preparando “A estória de Lélio e Lina”, que está no “Urubuquaquá, no pinhém”.
Marcela: Tem como entrar em contato com vocês, grupos que quiserem oficina de contadores de história?
D.G.: Tem, agora, a nossa oficina inicial não é dirigida à Guimarães Rosa. É formação de um contador de histórias, qualquer tipo de história: uma história de fada, ou um conto de tradição oral, então, não é propriamente para o conto literário. Agora, depois, se a pessoa quiser, aí ela vai... porque, assim, eu, por exemplo, eu comecei a narrar textos literários sem saber que tinha outras pessoas narrando. Foi um desejo meu, partiu do meu desejo para fazer isso aí. E eu acho, assim, muito legal, porque, a partir dessa iniciativa minha, de contar contos literários, porque depois eu comecei a contar Guimarães Rosa, depois a Elisa também começou a contar, porque ela contava contos de fadas. Aí, a tia Calina ouve a gente contar e chama a gente para ensinar os meninos, e a coisa cresce, aí, depois, começa a ter grupo de contadores em Andrequicé, em Morro da Garça, então, a coisa cresceu. Tem grupos de São Paulo, que a gente formou, que conta Guimarães Rosa, então, foi assim, um pólo de irradiação, sabe? Muito legal.
                                                                              
6.2 – Entrevista com Elisa Almeida, coordenadora do Grupo Miguilim
6.3 – Entrevista com José Osvaldo (Brasinha), criador do Grupo “Caminhos do Sertão”



[1] Existem várias hipóteses sobre a autoria da Ilíada e da Odisséia e até mesmo sobre a existência real de Homero, como explica Albert B. Lord: “(…) some scholars have gone so far as to deny even the existence of Homer, but the usual answer has been some form of multiple authorship for the poems with Homer at one end or the other of a series of poets. Sometimes he was the originator whose poems were carried through oral tradition or whose works were modified by later poets; more often he was the last of the redactors or compilers or, (…) he was the great poet who reworked oral tradition into a "literary" poem.” (LOYD, Albert B. The singers of tales. 2nd edition. Cambridge: Harvard University Press, 2000. p. 08)
[2] Guimarães Rosa prefere falar em “estórias”, e não em “histórias”. Com “h”, a palavra remete a sucessão de fatos passados; com ‘e”, a palavra teria sua existência presentificada, ligação com o novo, o original, o inaudito, o inédito, conforme depreendemos do prefácio “Aletria e Hermenêutica”, da obra Tutaméia (1967): “A estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra da História. A estória, às vezes, quer-se um pouco parecida com a anedota. (...) pela etimologia e para a finalidade, requer fechado ineditismo.” (ROSA, J.G. Ficção Completa. v. 2. Rio de Janeiro: nova Aguilar, 2009. p. 529) As narrativas rosianas, mesmo aquelas que se utilizam de “histórias” sertanejas ou tradições literárias preexistentes, têm como característica comum sua originalidade, demonstrada desde a linguagem até a forma de composição dos textos.  
[3] Fonte: IBGE, 2016.

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